Coluna: Opinião jurídica
Colunista: Lúcio Roca Bragança
Em 18 de setembro de 2013, F.A.A.R. assassinou sua mãe por atropelamento com veículo automotor, acelerando automóvel à frente e, após, em marcha à ré, por cerca de dez vezes. A genitora deixou-lhe um seguro de acidentes pessoais de aproximadamente R$ 100 mil.
A Seguradora negou o pagamento do capital, invocando os arts. 762 e 768 do Código Civil e a cláusula contratual que exclui da cobertura a prática de ato doloso pelo segurado ou beneficiário. A tese foi acolhida em sentença para confirmar a inexistência de cobertura para o infausto evento, mas, em segunda instância, o Tribunal de Justiça do Paraná reformou a decisão para obrigar a seguradora ao pagamento.
Em 1º de abril de 2025, o caso foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça à luz da lei federal, cuja missão constitucional é, justamente, uniformizar a interpretação e aplicação da legislação em todo território nacional. Por conseguinte, a tendência é de que o entendimento lá firmado venha a nortear a posição dos Tribunais de Justiça nos diversos Estados.
E o que a Corte Superior decidiu foi que inimputabilidade do agente afasta a incidência das disposições legais que vedam a cobertura de atos dolosos. Trata-se do Recurso Especial nº 2.174.212, cujas razões de decidir encontram-se sintetizadas na ementa:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. PREQUESTIONAMENTO DA MATÉRIA. SINISTRO CAUSADO PELO BENEFICIÁRIO INIMPUTÁVEL. VEDAÇÃO AO NON LIQUET. ART. 768 DO CC. AUSÊNCIA DE INTENCIONALIDADE. MANUTENÇÃO DO DIREITO ÀINDENIZAÇÃO.
- Hipótese em exame
- Recurso especial interposto pela seguradora contra acórdão que reformou a sentença de improcedência e concedeu a indenização securitária ao beneficiário inimputável que causou a morte da segurada.
- Questão em discussão
- Superada a admissibilidade, o propósito recursal consiste em decidir se deve ser concedida a indenização securitária ao filho beneficiário que, em declarada incapacidade (surto esquizofrênico), ceifa a vida da genitora segurada.
- Razões de decidir
- A lacuna legislativa acerca da possível atividade ilícita do beneficiário no momento do sinistro foi preenchida apenas recentemente, por meio do art. 69 da Lei n. 15.040/2024, em vacatio legis até 10/12/2025 (art. 134).
- Em atenção à vedação ao non liquet, verificado o hiato legislativo à época dos fatos, deve-se decidir o processo de acordo com “a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, nos termos do art. 4º da Lei Geral de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
- Por analogia, pode-se utilizar o art. 768 do Código Civil, o qual estabelece que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”. A interpretação teleológica do dispositivo, cuja finalidade é não premiar o sujeito que intencionalmente agrava o risco contratado, permite que a referida norma alcance não apenas o segurado, mas também o beneficiário, impedindo que este manipule o contrato de risco, agravando-o ou concretizando a seu bel-prazer, e, posteriormente, colha os benefícios daquilo que provocou dolosamente.
- Como consequência, nos contratos de seguro também prévios à Lei n. 15.040/2024, perderá o direito à garantia o beneficiário que agravar consciente e intencionalmente o risco objeto do contrato segurado.
- Para o Direito Civil, a inimputabilidade é pressuposto da livre manifestação de vontade, tratando-se de elemento prévio à averiguação da intenção (dolo ou culpa) do agente. O sujeito inimputável ou incapaz, quando realiza ato contrário ao direito, não pratica ato jurídico ilícito propriamente dito, mas ato-fato jurídico indenizável, nos termos do art. 928 do Código Civil.
- Como conclusão, o beneficiário inimputável que agrava factualmente o risco no contrato de seguro não o faz de modo intencional (com dolo), pois é, ontologicamente, incapaz de manifestar vontade civilmente relevante.
- Afastada a aplicação do art. 768 do Código Civil por analogia, deve ser mantido o acórdão que concedeu a indenização ao beneficiário.
- Dispositivo
- Recurso especial conhecido e não provido.
Dispositivos citados: arts. 762, 766, 768, 769 e 928 do Código Civil e art. 69 da Lei n. 15.040/2024.
Com efeito, o beneficiário padecia de transtorno bipolar e cometeu o homicídio em momento de surto, o que ocasionou sua absolvição no processo criminal por ser considerado inimputável. De acordo com a sentença absolutória, o agente era “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do seu ato e de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Em razão disso, a Ministra Relatora, ao julgar o processo de seguro, considerou o homicídio não como um ato doloso, mas como um ato-fato jurídico e, na esteira deste entendimento, afastou as disposições legais que pressupõem o dolo para a sua incidência.
Do ponto de vista social, pode-se dizer que, sendo a incapacidade do agente total, o julgamento não serve de estímulo econômico para que mais beneficiários pratiquem o mesmo ato. E igualmente, não há que se falar em supressão do risco, pois, ausente a vontade válida, o evento queda caracterizado como uma fatalidade aleatória. Ademais, sendo o beneficiário incapaz, a probabilidade é de que não possa se autossustentar, de modo que o capital segurado auxiliará àquele que lhe estiver provendo.
Por fim, releva notar que, a despeito do destaque dado pelo julgado à vacatio legis da Lei 15.040/2024, o resultado do julgamento não se alteraria, estivesse a nova lei vigente, pois também ela exige o dolo para a perda do direito ao seguro. Portanto, o julgamento do Superior Tribunal de Justiça tende a perseverar sob a égide da nova legislação.
Advogado no Escritório Boch&Favero. Pós-graduado em Direito do Seguro e Direito do Estado.
Diretor Jurídico Adjunto do CVG/RS. Secretário-Geral da Comissão de Seguros e Previdência Complementar da OAB/RS.



